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06/01/2011 / Em: Clipping

 


Ano novo… (Folha de S.Paulo –Cotidiano – 06/01/11)

PASQUALE CIPRO NETO

…BOBAGENS VELHAS. Mais uma vez, caro leitor, vou falar de preciosidades presentes em títulos jornalísticos. Os vestibulares estão aí. Como sempre, muitos deles vão apresentar questões baseadas em títulos e textos dos diversos meios de comunicação, com o objetivo de avaliar a capacidade do candidato de “descobrir” a ambiguidade de determinadas construções, a contradição que muitas delas encerram etc. Normalmente, as bancas não se limitam a pedir ao candidato a identificação do problema; pedem também que os trechos sejam reescritos, com clareza, coesão, correção etc. O leitor habitual deste espaço sabe que volta e meia analiso textos jornalísticos típicos dessas questões. Faço-o sempre com a preocupação de evitar a repetição dos temas, ou seja, ora analiso um caso em que o problema está na pontuação, ora outro caso em que o problema está ordem -e assim por diante. A ordem, aliás, é, de longe, a pedra-mor desse tipo de texto ou título. Como tenho demonstrado aqui ao longo dos anos, a criatividade não tem limite. Para ilustrar o ponto a que se chega, relembro um texto abordado pela Unicamp há algum tempo: “Ao chegar ao ancoradouro, recebeu Alzira Alves Filha um colar indígena, feito de escamas de pirarucu e frutos do mar, que estava acompanhada de um grupo de adeptos do Movimento Evangélico Unido”. Acredite, caro leitor: o texto não é invenção da Unicamp, não. Desfeitos os contorcionismos a que nos obriga a incrível ordem dada aos termos, chega-se ao óbvio, que é isto: “Ao chegar ao ancoradouro, Alzira Alves Filha, que estava acompanhada de um grupo de adeptos do Movimento Evangélico Unido, recebeu um colar indígena, feito de escamas de pirarucu…”. Pois essas coisas fazem escola. Na quarta-feira da semana passada, um site estampou uma foto em que se via um congestionamento. Eram veículos que desciam a serra do Mar, na rodovia dos Tamoios. Sabe qual era a legenda da foto? Lá vai: “Trânsito congestionado na rodovia dos Tamoios, na descida da serra do Mar, na noite desta quarta-feira, estrada que leva à Caraguatatuba”. Pois é, caro leitor, a noite desta quarta-feira é uma estrada. E essa estrada leva “à” Caraguatatuba. Como se já não bastasse a bizarríssima ordem dada aos termos, a coisa termina com uma cerejaça no bolo: “à” Caraguatatuba. Será que os habitantes da Caraguatatuba sabem que moram na Caraguatatuba? Pois é, como ninguém nasce na Caraguatatuba (nem mora na Caraguatatuba, nem leva horas e horas para ir da Caraguatatuba aonde quer que seja), não há estrada que leve alguém “à” Caraguatatuba. Como se sabe, “à” resulta de “a” + “a”. Como o leitor acabou de ver, não existe artigo feminino antes de Caraguatatuba (as pessoas nascem/vivem/moram em Caraguatatuba, vão/partem/saem de Caraguatatuba), portanto a estrada leva a (e não à) Caraguatatuba. Mas isso era só a cereja (cerejaça!) do bolo.
E o bolo em si? Uma parte dele já foi vista (o trecho “na noite desta quarta-feira, estrada que leva…”). O fato é que os termos que compõem a frase foram jogados no liquidificador. Terminada a operação, o produto da liquefação foi despejado (ou “deitado”, como se diz deliciosamente em Portugal) numa tigela, digo, numa legenda de foto… Vamos reescrever a frase? Que tal algo como “Trânsito congestionado na descida da Serra do Mar pela (ou “na’) rodovia dos Tamoios, estrada que leva a (e não “à”, santo Deus!) Caraguatatuba, na noite desta quarta-feira”. Simples, não? O assunto talvez comporte outro capítulo (que deve passar por uma conversa sobre o papel do aposto). É isso.

MINHA HISTÓRIA BENEDICTO FONSECA FILHO, 47   (Folha de S.Paulo – Mundo – 06/01/11)

Filho de um contínuo, Benedicto Fonseca Filho, 47, foi promovido em dezembro a embaixador, o primeiro negro de carreira. E o mais jovem. Passou por Buenos Aires, Tel Aviv e Nova York. Vai chefiar o departamento de Ciência e Tecnologia. Ele declara orgulho de ser negro e filho de pais humildes que o educaram para chegar ao topo na casa mais aristocrática do país. Nasci no Rio, em 1963. Mudei para Brasília em 1970 porque meu pai veio ser funcionário do Itamaraty. Ele foi agente de portaria, que é um contínuo. Quando eu tinha nove anos, toda a família foi para a [antiga] Tchecoslováquia [no leste europeu], quando meu pai foi removido para Praga por três anos. Naquele tempo, todos os funcionários das embaixadas eram de carreira. Hoje, esses são terceirizados. Foi essa experiência internacional que me despertou o interesse pelo Itamaraty. Talvez por ter estudado em escolas internacionais, na escola francesa e na americana. Meu pai e minha mãe, na sua humildade, nunca pouparam esforços para nos proporcionar as melhores condições de estudo. Hoje, meu pai tem 84 anos, já é aposentado há 14. Minha maior satisfação foi eu ser promovido com ele ainda vivo. Ele ficou tão ou mais contente do que eu. Fiz o concurso [do Itamaraty] em 1985 e entrei de primeira, aos 22 anos. Quando saiu a lista dos aprovados, um jornal de Brasília fez uma matéria que dizia: “Mulher e negro passam em primeiro lugar no Rio Branco”. A mulher foi o primeiro lugar e eu, o segundo. Vinte e cinco anos depois, uma mulher passar em primeiro lugar já não causa tanto espanto. Naquela época, tinha só uma mulher embaixadora. Hoje, são várias mulheres embaixadoras, acho que 20, ocupando postos importantes. Talvez chame muito mais atenção quando um negro ascende na carreira do que uma mulher. Em relação à diversidade racial já avançamos muito, mas ainda temos muito que avançar. Houve um olhar para essa questão na gestão do ministro Celso Amorim.

PRECONCEITO
O preconceito nunca se apresenta claramente. No campo das relações humanas, você nota reação positiva ou negativa das pessoas. Mas seria leviano dizer que eu experimentei uma situação que pudesse identificar como preconceito [no Itamaraty]. Nunca houve. Me lembro de um caso [de reação positiva]. A primeira vez que fui à ONU em 2004, um colega do Caribe me chamou no canto para dizer que pela primeira vez via um diplomata negro na delegação brasileira. Ele enfatizou: “It’s the first time ever, ever. We are proud” [É a primeira vez. Estamos orgulhosos]. Eu faço um paralelo com os EUA, que tiveram um sistema de cotas importante para criar uma classe média negra que se autossustenta, que agora pode seguir em frente sem a necessidade de políticas diferenciadas. No Brasil, as cotas das universidades vão produzir uma diversidade salutar.

COTAS NO ITAMARATY

É preciso haver políticas de ação afirmativa. No ministério, damos bolsas para proporcionar condições financeiras adequadas para que os afrodescendentes se preparem, o que tem tido um resultado muito positivo. O objetivo é dar condições para pessoas que têm talento. Algumas vezes é visto como se estivessem recebendo um privilégio. Temos o cuidado de preservar as condições de preparação. Eu não me beneficiei de nenhuma política. Na época, não havia. Mas olhando retrospectivamente, creio que me beneficiei de certas circunstâncias.
Tive oportunidades que raramente os negros têm. Morei no exterior, estudei idiomas com a ajuda do Itamaraty, porque ajudavam nos estudos dos filhos dos funcionários.
Os críticos das cotas têm uma contribuição que não é irrelevante. Eles dizem que, cientificamente, não há raças, não há diferenças entre brancos e negros. É uma desmistificação para quem acha que há diferenças intrínsecas. Mas há uma falha no argumento. Do ponto de vista humano e das relações sociais, existem diferenças. Basta ver os índices sociais, condições de saúde e de moradia para ver que existe um problema. Isso não é tratado de maneira séria e aprofundada [pelos críticos]. Nosso país tem muitos passivos. A preocupação social e racial tem que andar lado a lado. Ou deixamos as coisas acontecerem, ou tentamos uma intervenção. O assunto não pode ser jogado para debaixo do tapete.

ÁFRICA
Nos últimos anos, houve uma preocupação de diversificar as relações externas, ter um olhar novo não só em relação à África. Resgatar elementos de nossa identidade, cultura e sociedade. Mas também avançamos na área comercial, levando em conta nosso interesse econômico. Tenho orgulho de ser negro. Faz parte da minha identidade. E de ser brasileiro. Mais do que isso, tenho orgulho de ser filho dos meus pais.