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14/08/2009 / Em: Clipping

 


O estatuto da raça (Folha de São Paulo – Editoriais – 14/09/2009)

Câmara aprova lei de igualdade com vários dos defeitos eliminados, mas ameaça racialista resiste em projeto no Senado

O ESTATUTO da Igualdade Racial terminou aprovado na Câmara esvaziado do conteúdo controverso da proposta original do senador Paulo Paim (PT-RS). Caíram as reservas de um número de vagas, em programas de TV e instituições públicas de ensino superior, para pessoas que declarem ter pele preta ou parda. Sobreviveu a cota de 10% nas vagas para candidaturas legislativas.
Em vez de cotas, o estatuto prevê a possibilidade de um incentivo fiscal para empresas que contratem no mínimo 20% de pessoas que considera negras. O projeto ainda necessita da aprovação do Senado. Existe a expectativa de que o presidente Lula o sancione em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Com razão, muitos brasileiros repudiam o critério racial -que carece de fundamento científico- como base para a discriminação positiva, concebida para corrigir desigualdades flagrantes na sociedade nacional.
Cidadãos que, nas pesquisas populacionais do IBGE, declaram preta ou parda a sua pele constituem fração desproporcional do contingente de pobres. Muitos ficam sem acesso aos meios de ascensão propiciados pela educação universitária. Consagrar em lei o equívoco da divisão da sociedade em raças, contudo, nem por isso se torna solução aceitável, à luz do imperativo constitucional da igualdade entre os cidadãos.
A motivação original do estatuto se reapresenta em outro projeto de lei, oriundo da Câmara. Foi aprovado pelos deputados com uma reserva de 50% das vagas em faculdades federais e estaduais para alunos egressos das redes públicas de ensino. Com a ressalva da parcela exagerada da reserva -metade, em todo o país-, trata-se aqui de medida aceitável, pois beneficia todos, sem distinção de cor de pele, num estrato em que prevalecem jovens de menor renda.
Apesar disso, o projeto torna obrigatória também uma subcota nesse contingente, para alunos considerados negros e índios, na proporção de sua representação populacional no Estado onde funcionar a instituição. Da Câmara o projeto seguiu ao Senado. Na Comissão de Constituição e Justiça, a relatora, Serys Slhessarenko (PT-MT) já votou por manter o texto da Câmara.
O opositor Demóstenes Torres (DEM-GO), porém, apresentou substitutivo eliminando o critério racial e reduzindo a reserva para estudantes de escolas públicas de 50% a 30% das vagas -e só nas instituições federais. Sua proposta também limita as cotas ao prazo de 12 anos.
A adoção do critério social é a medida mais razoável para corrigir a distorção de classes no acesso ao ensino superior público. A USP apostou nessa via -refutando a absorção de qualquer viés racial em seu vestibular- e colhe resultados promissores. A fatia de calouros egressos de escolas públicas atingiu 30% neste ano, contra 26% em 2008. No curso de medicina, no qual a aprovação é das mais difíceis, essa proporção saltou de 10% para 38%, de um ano para o outro.
Está aí, sem dúvida, um bom exemplo a ser seguido.

Superação de um mito via educação (Folha de São Paulo – TENDÊNCIAS/DEBATES – 13/09/2009)

VINCENT DEFOURNY

Último país a abolir a escravidão negra, o Brasil demorou mais de um século para começar a questionar o mito de democracia racial

ÚLTIMO PAÍS a abolir a escravidão negra, em 1888, e com a segunda maior população negra mundial, menor apenas que a da Nigéria, o Brasil demorou mais de um século para começar a questionar o mito de democracia racial, principal combustível do racismo velado e ainda presente na sociedade brasileira.
Só a partir dos anos 1990, fruto de reivindicações dos movimentos sociais, o Estado brasileiro reconheceu a relevância da questão étnico-racial para a superação dos problemas sociais, desenvolvendo uma série de ações e programas que hoje colocam o país em posição destacada no cenário internacional.
A escolha da política educacional como eixo central nessa nova conjuntura sinaliza uma possível mudança substantiva das relações étnico-raciais na sociedade.
A agenda étnico-racial brasileira teve seu ponto de inflexão na participação do Brasil na 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata da Unesco, em Durban, realizada em 2001.
Após a conferência ampliaram-se os espaços de implementação de políticas públicas inovadoras para a eliminação das desvantagens sociais enfrentadas especialmente pelos afrodescendentes, com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, no MEC, e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
É também a partir de Durban que as universidades brasileiras passam a implementar programas de ações afirmativas, tais como as cotas raciais.
Para a Unesco, o marco histórico dessa nova trajetória foi a promulgação, em 2003, da lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental e médio.
A lei estabelece que o conteúdo programático inclua a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e a sua importância na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política.
A lei contribui para a construção de um novo pacto social por meio do qual a valorização formal da cultura negra é reconhecida como uma das matrizes da sociedade brasileira.
Não se trata apenas da introdução de conteúdos no currículo escolar, mas de um instrumento para mudar concepções e práticas pedagógicas que estruturem novas relações na escola e na sociedade.
Por isso é importante que a lei saia do papel e vire uma prática. Apesar do esforço de alguns Estados e instituições, a sua aplicação ainda não é uma realidade na rede de ensino do país devido a problemas como a falta de materiais didáticos adequados e a fragilidades na formação docente.
Duas importantes iniciativas, realizadas por meio de cooperação internacional com a Unesco, certamente contribuirão para a efetiva aplicação da lei nas práticas pedagógicas em sala de aula, promovendo um ensino mais coerente com a importância da cultura negra na história brasileira, evitando a imagem racializada e eurocêntrica do continente africano.
A primeira delas é o lançamento, em diferentes regiões brasileiras, do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Em novembro próximo, no marco da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, serão lançados dois volumes da versão em língua portuguesa da Coleção História Geral da África, publicada pela Unesco após um trabalho desenvolvido durante 30 anos com a contribuição de 350 especialistas e 39 intelectuais, sendo dois terços africanos. Trata-se do primeiro estudo contado a partir da visão de pesquisadores nativos.
Espera-se que a coleção contribua para o desenvolvimento da educação mais focada na diversidade cultural como um valor, contribuindo assim para a ressignificação da contribuição africana na nossa história.
As mudanças no currículo escolar são ações de grande relevância, mas sabemos que só será possível atingir a utopia da democracia racial e da igualdade social, tão almejada pelo Brasil, se pudermos construir uma história comum e firmar as bases de um diálogo intercultural genuíno, capaz de transmitir uma mensagem universal de respeito às diferenças, como bem lembrou o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, em mensagem por ocasião do Dia Internacional de Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição, comemorado em 23 de agosto.

VINCENT DEFOURNY, 49, doutor em comunicação pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, é representante da Unesco no Brasil (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).


Estatuto da Igualdade Racial divide opiniões (Gazeta online – Geral – 14/09/2009)

Aprovado nesta semana na Câmara dos Deputados, o Estatuto da Igualdade Racial divide opiniões de integrantes do movimento negro.

Há consenso, no entanto, em um ponto: o texto da lei não contempla bandeiras importantes e históricas para os negros, como a definição de cotas em universidades e na mídia e sobre quem são os remanescentes dos quilombos.

O projeto de lei que cria o estatuto foi aprovado pelos deputados em caráter conclusivo (não passou pelo plenário), na quarta-feira (9), dez anos após o início das discussões do projeto no Congresso.

Agora, ainda precisa passar pelo Senado. Ou será analisado em comissão em caráter conclusivo ou irá à votação em plenário, conforme o que ficar decidido entre os senadores. Só depois é que irá à sanção presidencial.

O governo quer que tudo esteja pronto para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancione a lei no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

Prós
O ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, diz que o estatuto ressalta a tese de que não há igualdade racial no Brasil. Segundo ele, no caso das cotas nas universidades, o tema ficou de fora porque está sendo analisado em projeto separado que tramita no Senado.

“O estatuto é o reconhecimento do Estado brasileiro em relação às desigualdades raciais e é a criação de um instrumento que garante inclusão. É uma vitória daqueles que defendem a tese de que nem todos são iguais e que há obrigação do Estado brasileiro com aqueles que estão excluídos de oportunidades do nosso país”, afirma o ministro.

Edson Santos participou das negociações para aprovação do estatuto na Câmara e afirmou que o consenso “não foi fácil”. “Foi gratificante. Nos levou a empenho grande, no convencimento das pessoas. Não foi fácil buscar o consenso até na questão do projeto ser votado na Câmara de forma terminativa.”

O ministro disse que assim que o projeto de lei sair da Câmara ele deve ir pessoalmente ao Senado conversar com o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), para discutir a criação de uma comissão especial para que o tema seja analisado em caráter terminativo.

Um dos dirigentes da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Flávio Jorge afirma que, embora o estatuto não seja “exatamente” o que a entidade deseja, “significa o coroamento de uma luta que o movimento negro tem desenvolvido na construção de políticas públicas e superação do racismo”. “Passa a ser um marco desses 30 anos de luta.”

“Estatuto é a criação de um instrumento de inclusão e a vitória de quem defende a tese de que nem todos são iguais ”
Edson Santos
Ministro da Igualdade Racial

Entenda o Estatuto da Igualdade Racial

Definições
Discriminação racial: Distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, descendência ou origem nacional.
Desigualdade racial: Todas as situações injustificadas de diferenciação de acesso e oportunidades em virtude de raça.
População negra: O conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.

Principais pontos
Educação. Obriga escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privada, a ensinar história geral da África e da população negra no Brasil.
Educação II. Prevê que poder público adote programas para assegurar vagas para população negra em instituições federais de nível médio e superior, mas não estabelece cotas.
Trabalho. Incentivos fiscais a empresas com mais de 20 empregados que contratarem pelo menos 20% de negros. Para entrar em vigor, precisará ser regulamentado.
Trabalho II. Proíbe empregador de exigir boa aparência e foto no currículo.
Política: Partidos devem ter cota de 10% de candidatos negros na eleição (projeto inicial era de 30%).

O que ficou de fora
1. Percentual de cota para negros nas universidades
2. Cota para negros na televisão e em filmes
3.Definição de quem eram os remanescentes dos quilombos
4. Exigência de o Sistema Único de Saúde (SUS) identificar pacientes no atendimento pela raça



Estudo aponta que 20% dos universitários índios não conseguem concluir a faculdade no país  (Correio Braziliense – Brasil – 13/09/2009)

Rodrigo Couto

Os índios estão enfrentando dificuldades para concluir o ensino superior no Brasil. Apesar das ações afirmativas do governo federal, levantamento inédito do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), ao qual o Correio teve acesso com exclusividade, revela que pelo menos 20% (1,2 mil) dos cerca de 6 mil estudantes indígenas de cursos de graduação de todo o país (leia quadro) não conseguem terminar seus estudos. A entidade aponta o preconceito, a língua, a ausência de conteúdo básico das etapas iniciais da atividade escolar, além do baixo valor das bolsas, como as principais causas da evasão indígena nas universidades. Para tentar frear a debandada, as etnias reivindicam a criação de instituições exclusivas e a inserção de disciplinas com temática específica dessa parcela da população.

A explosão do acesso dos índios às universidades não veio acompanhada de políticas para garantir a permanência deles na educação superior, segundo Gersem Baniwa, diretor-presidente do Cinep. “Falta apoio do governo e uma maior preparação dos estabelecimentos de ensino, principalmente no início, quando os indígenas sentem mais dificuldades de adaptação e inserção no ambiente acadêmico. Existem medidas em construção, mas, por enquanto, nada de concreto”, afirma ele, que é doutorando pela Universidade de Brasília (UnB). “Uma das soluções para reduzir a grande evasão é a criação de universidades próprias para índios. A adaptação seria mais fácil e compreensiva”, sugere.

O diretor de diversidade da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), Armênio Schmidt, rebate as críticas de Baniwa, que também trabalha na pasta, e diz que o governo federal tem se empenhado na busca de um ambiente ideal não só aos índios, mas também aos negros e a outras minorias. “Recebemos muitas reivindicações de acesso e manutenção, inclusive essa proposta de criação de universidades específicas. Na avaliação do MEC, ainda não é o momento de setorizar o ensino superior. Temos que investir em diversidade. Criar um estabelecimento somente para índios hoje seria, talvez, um processo inverso do que estamos fazendo, mesmo respeitando as demandas desse grupo”, explica Schmidt.

Guetos
Para Schmidt, criar universidades específicas de índios seria como formar guetos. “Não sei se é o termo certo, mas é mais positivo ampliarmos a participação dos indígenas em todos os cursos nos estabelecimentos existentes. Queremos inserir as demandas desse grupo com as demais ações de políticas públicas”, observa. Outro empecilho, de acordo o diretor do MEC, seria o corpo funcional. “Para a universidade ser indígena, deverá ter professores e reitores índios. Ainda não temos quadro suficiente para isso. Não existem profissionais formados suficientes para preencher essas vagas. Para fazer concurso, há uma série de exigências”, acrescenta.

Professor emérito de antropologia da UnB, Roque Laraia também vê com restrição a criação de universidades específicas de índios. “Nos Estados Unidos, deu certo. No entanto, aqui, com 220 povos falando 180 línguas, é mais complicado. Não sou contra, mas acho difícil”, opina. “Geralmente, o movimento indigenista fala de forma unificada, mas, o que pode ser bom para um grupo, pode não ser viável para outros”, diz.

Dos 6 mil universitários indígenas, pelo menos 4,1 mil estão se preparando para ensinar outros índios. Eles recebem uma bolsa de até R$ 1,2 mil para custear despesas de transporte, alimentação e habitação. “Em Brasília, por exemplo, esse valor atinge o teto, mas ainda é pouco, considerando o alto custo de vida da capital”, salienta Gersem Baniwa. Outro problema é que a bolsa atende somente aos estudantes de licenciatura. “Apresentamos um projeto ao Congresso que, se aprovado, vai nos permitir pagar bolsas para estudantes de outros cursos”, observa Schmidt.

Adaptação é um problema

Estudar fora da cidade de origem é um desafio para qualquer pessoa. Para os índios, esse obstáculo parece ser ainda maior. A cultura, a língua, a comida, o clima, as amizades. Tudo influencia. É o caso da estudante de engenharia florestal da Universidade de Brasília (UnB) Suliete Gervásio, 22 anos, que gosta do ambiente acadêmico, mas ainda não está adaptada. “É muito difícil morar longe de casa. Tudo aqui é diferente. O que mais sinto falta é de peixe fresco e de tucupi”, afirma. Integrante da etnia Taperera, situada às margens do Rio Negro, no Amazonas, Suliete também sofre com o conteúdo das aulas na universidade. “Como tive um ensino básico fraco, se comparado ao conteúdo exigido pela UnB, fica difícil acompanhar as disciplinas”, admite.

Em 2009, completam-se dois anos que a jovem trocou o Amazonas pelo Distrito Federal. “Esse grande esforço vai valer a pena, pois quero ajudar o meu povo”, diz. Moradora de Sobradinho, Suliete reclama do baixo valor da bolsa para se manter na capital. “Não é suficiente para pagar aluguel, transporte e alimentação. Ainda bem que meus pais me ajudam”, ressalta.



Revolução na escola (Edição 2079 – 16/09/2009)

Como o novo Enem vai mudar a forma de transmitir e avaliar o conhecimento nas instituições de ensino. E essas transformações começam na alfabetização

Francisco Alves Filho e Suzane G. Frutuoso

Uma nova educação está batendo às portas das escolas brasileiras. Com atraso, é verdade. Durante décadas nosso aprendizado permaneceu focado em ler, escrever e calcular. Educadores e governo esqueceram que o ser humano precisa de compreensão ampla sobre o cotidiano e o mundo para interagir de maneira saudável com a vida. Agora, o pensar será privilegiado no lugar do simples memorizar.

O novo conceito do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a ser testado nos dias 3 e 4 de outubro, será o passo decisivo de uma revolução na educação do País. Para os alunos se saírem cada vez melhor nele e terem a oportunidade de ingressar em universidades de qualidade, as escolas já estão repensando o jeito de ensinar, desde a educação infantil.

Em maio foi divulgada a reformulação da prova, criada em 1998. As alterações serão decisivas para boa parte dos cerca de 1,5 milhão de estudantes que ingressarão na universidade no ano que vem. Se antes as 63 questões cobravam organização de informações, interpretação de textos e gráficos, mas num apanhado de testes engessados por disciplinas sem diálogo entre si, na atual versão haverá uma divisão por áreas (leia quadro à pág. 84).

Isso exige raciocínio lógico, compreensão do conteúdo estudado no ensino médio e o uso do conhecimento de disciplinas distintas em uma mesma solução. A prova será mais trabalhosa, com 180 questões de múltipla escolha (além da redação), e em dois dias de testes.

O modelo é parecido com o SAT, elaborado em 1926, nos Estados Unidos, para o ingresso nas universidades americanas. Como o método prima pela excelência, a famosa decoreba não tem vez. Será assim também com o novo Enem. E é justamente o que obrigará as escolas a se adaptar

“O saber é mutável e, hoje, atualizado com rapidez”, diz Neide Noffs, diretora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Em curto prazo, memorizar é irrelevante. Iniciativa e entendimento devem ser estimulados.”

Para isso, as instituições de ensino terão de oferecer aos estudantes a oportunidade de debater um mesmo assunto em várias matérias do currículo escolar, de maneira integrada. No Colégio Rio Branco, em São Paulo, temas da atualidade, como a gripe suína, são enfocados do ponto de vista da geografia, da matemática, da história, da sociologia.

“O excesso de fragmentação das disciplinas, transmitidas de modo isolado ao jovem, impede o aproveitamento significativo do aprendizado na vida dele”, diz a diretora Esther Carvalho. Essa proposta de educação não é nova. A determinação existe há 11 anos, quando foram instituídas pelo Ministério da Educação (MEC) as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

Fora os colégios de elite das grandes metrópoles, que têm recursos para investimentos em pessoal e infraestrutura, a maior parte do sistema educacional não adotou os parâmetros. Com o Enem, as escolas foram forçadas a isso. “O exame se tornou uma cobrança oficial”, afirma Heliton Ribeiro Tavares, diretor de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Os professores também serão obrigados a se atualizar. Quem não voltar a estudar e valorizar a transmissão de um ensino inteligente, está fadado a ficar para trás. O aluno está antenado 24 horas por dia, por todos os meios possíveis, graças ao acesso à tecnologia.

Precisa, porém, aprender a organizar tanta informação. “Ele traz o novo ao professor”, diz Gracia Klein, diretora pedagógica do Colégio Pentágono, em São Paulo. Esses profissionais não podem mais negar que os alunos pensam junto com o mestre.

Por exemplo, o professor que ignora a capacidade de quem alcança o resultado de uma equação por um caminho diferente da fórmula predeterminada não está aberto para a interação e o questionamento. E a figura autoritária não é respeitada pelo estudante do século XXI. Não é surpresa perceber que as escolas mais bem colocadas no ranking do Enem são justamente as que oferecem um ensino baseado na interdisciplinaridade e investem na formação da equipe.

Em São Paulo, professores de colégios badalados ganham em média R$ 7 mil, por 40 horas de aula semanais. Eles são titulados e recebem toda a estrutura necessária dos empregadores para aperfeiçoamento. “Depois da publicação dos resultados do Enem, escolas de outros Estados vêm nos visitar para conhecer a metodologia que aplicamos”, diz Adilson Garcia, diretor do Colégio Vértice, o primeiro no ranking da capital paulista.

Em cinco anos, a escola passou de 600 alunos para 900, tamanha a procura. Para cada uma das 100 vagas oferecidas anualmente, há cerca de oito famílias interessadas. No Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, primeiro colocado no ranking nacional do Enem, a constância do modelo de ensino é o que o leva ao sucesso. “Não preparamos o aluno para este ou aquele tipo de vestibular”, diz Pedro Araújo, coordenador de ensino médio. “Procuramos dar uma preparação sólida.”

Estudar numa escola com mestres motivados, bem estruturada e incentivadora do raciocínio traz confiança aos candidatos a uma futura vaga nas melhores universidades. “Estou sendo preparado desde já”, diz Caio Becker, 16 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio do Centro Educacional da Lagoa, no Rio de Janeiro.

Felipe Cabral, 17 anos, aluno do terceiro ano do Vértice, diz sentir segurança com o que aprendeu na escola para disputar uma das vagas de engenharia da computação em instituições de calibre. “Nenhum cursinho me prepararia melhor”, afirma. Sua colega Andressa Mendonça, 17 anos, é da mesma opinião.

“Tive contato com pessoas de outras escolas e percebi que estou mais bem preparada”, fala a jovem, que sonha com a carreira de arquiteta. O Enem se tornou um indicador de qualidade tão importante que pais de crianças já escolhem a escola dos filhos usando o ranking como critério.

Com dois filhos ainda no ensino fundamental, a arquiteta Carla Pimentel resolveu que eles deveriam ingressar numa escola que rendesse bons resultados no exame nacional. No ano passado, transferiu Maria Inês, 12 anos, e João Vitor, 14, para o Liceu Franco- Brasileiro, no Rio de Janeiro. “Escolhi o colégio porque está bem colocado no ranking”, afirma. “Isso me dá a certeza de que há chances maiores de acesso a boas universidades e também no mercado de trabalho.”

A preocupação é válida, mas precipitada. Primeiro por não existirem garantias – apesar de ser a hipótese mais provável – de que as escolas campeãs no Enem hoje continuem assim com o passar do tempo. Segundo, porque vale mais optar por uma instituição na qual os valores são semelhantes aos da família da criança.

“Não adianta colocar no colégio rígido por ser o melhor, se em casa a educação é mais liberal”, diz Osmar Ferraz, coordenador de vestibular do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. Por fim, deixar a criança numa escola em que ela não consegue acompanhar o ritmo puxado pode ser um massacre, que gera traumas e interfere na boa formação

“Com o novo Enem haverá uma democratização do acesso ao ensino superior. É um avanço”
Miguel Roberto Jorge, pró-reitor de graduação da Unifesp

Pais que desejam garantir uma educação de qualidade devem ficar atentos se a escola escolhida está adaptada às atuais regras do ensino fundamental. Antes, era obrigatório dos 7 aos 14 anos (da 1ª a 8ª série). A nova faixa etária vai dos 6 aos 14 anos (do 1° ao 9° ano). Além de um ano a mais de estudo, as diretrizes pedem espaço ao conceito de letramento, que significa ensinar as crianças a ler e escrever compreendendo a essência dos exercícios.

O raciocínio lógico também passa a ser valorizado desde cedo. É nessa linha que segue o Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos), promovido a cada três anos pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mede o conhecimento entre jovens de 14 e 15 anos de diversas nações. E o Brasil vai mal. No último resultado, de 2007, os alunos brasileiros obtiveram médias que os colocam, entre 57 países, na 53ª posição em matemática, na 48ª em leitura e na 52ª em ciências.

Outra característica inovadora do Enem é a possibilidade de o candidato concorrer com a mesma prova em até cinco universidades federais. Um avanço que aumenta as chances de ingresso em instituições qualificadas e diminui o gasto com inscrições de vestibular e em deslocamento para realizar o exame.

“Democratiza o acesso ao ensino superior”, diz Miguel Roberto Jorge, pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que utilizará a avaliação como forma de ingresso único em 19 dos 26 cursos. A mineira Diana Salma, 31 anos, entrou na faculdade de medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2008 apenas com os resultados do Enem. “Por esse critério, fiquei em 14º lugar”, comemora. Malvina Tuttman, reitora da UNIRIO, vê mais uma vantagem. “O exame incentivará a mobilidade estudantil pelo território nacional.”

Mas nem todos os educadores estão otimistas com as mudanças. Os críticos dizem que estudantes do Sudeste que não alcançarem pontuação para estudar nas faculdades de seus Estados terão nota suficiente para cursar as instituições do Norte e Nordeste, tomando o lugar dos candidatos dessas regiões.

“Vamos provocar justiça social, ao permitir acesso a candidatos de várias partes do País, ou injustiça social, ao permitir que alunos locais sejam excluídos por pessoas que se preparam em colégios caros?”, questiona Roberto Salles, reitor da Universidade Federal Fluminense.

A discussão retorna à necessidade de um investimento de impacto no ensino público para que a desigualdade social, ao invés de aumentar, ganhe menores proporções. O programa Ensino Médio Inovador é um caminho.

O projeto pretende mudar a organização curricular das escolas das redes estaduais. As 100 instituições que apresentarem até 24 de setembro propostas de inovação receberão financiamento do MEC. A intenção é estimular a diversificação de atividades integradoras, com ênfase na formação cultural do aluno.

Em três anos, o MEC espera que o Enem seja o principal processo de seleção de universidades públicas e privadas. “Todas as instituições vão perceber que esse é o melhor método”, garante Maria Paula Dalari, secretária de Ensino Superior. Por enquanto, muitas acreditam que seu vestibular tradicional é eficiente.

“Consideramos o nosso sistema consolidado”, diz Márcia Abrahão, decana de graduação da Universidade de Brasília (UnB), que usa o Programa de Avaliação Seriada, no qual, por meio de convênios com as escolas locais, acompanha o desempenho dos alunos a cada série do ensino médio desde 1995. “Nosso vestibular já privilegia argumentação, competências e habilidades”, diz André Sarmantini, vice-coordenador de graduação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

“Mas, se o exame evoluir, podemos incorporá-lo.” E a avaliação pode melhorar ainda mais. A ideia é que em 2010 a prova seja realizada em duas etapas, tomando novamente como exemplo o SAT americano, que acontece em sete fases. Não demandaria um imenso teste e os alunos se preparariam mais.

Caso a evolução do Enem se concretize, juntamente com as mudanças positivas prometidas para os ensinos fundamental e médio, a esperança é que em dez anos, cálculo dos especialistas ouvidos pela reportagem de ISTOÉ, a educação brasileira forme pessoas mais preparadas para a vida – e resulte em uma nação cada vez melhor.

“O ENEM VAI REORIENTAR O ENSINO”

O ministro da Educação, Fernando Haddad, falou à ISTOÉ sobre os reflexos do exame nas escolas.

ISTOÉ – Por que só agora, 11 anos após sua criação, o Enem chegou a esse novo formato?
Fernando Haddad –
O Enem, no seu formato original, falhou no seu principal propósito, que era acabar com o vestibular tradicional. As principais universidades não viam o Enem como um instrumento adequado para seus processos seletivos nem os secretários estaduais viam no exame o formato adequado para orientar o currículo do ensino médio. Daí a mudança foi necessária e, em minha opinião, recebeu apoio em função de ter sido um formato negociado, tanto com os secretários estaduais quanto com os reitores.

ISTOÉ – Algumas universidades, como o ITA, dizem que não vão aderir porque sua seleção dá certo. Em quanto tempo acredita que todas participarão?
Haddad
– Estamos prevendo para as universidades federais um processo de transição de três anos. Nesse primeiro ano, 50 instituições vão utilizar o Enem como fase única e 26 universidades públicas vão usá-lo como componente da nota. Compreendo que algumas instituições, por adotarem um processo seletivo adequado aos seus propósitos, não tenham a intenção, nesse momento, de fazer do Enem a base de seu processo seletivo

“Hoje, em virtude do conteúdo excessivo, os professores têm pouca condição de aprofundar as disciplinas”

ISTOÉ – O sr. acredita que o conceito do novo Enem vai mudar o jeito de as escolas ensinarem?
Haddad –
Não tenho dúvida de que vai reorientar o ensino médio, fazendo com que diminua o conteúdo e permita o aprofundamento dos temas pertinentes a essa etapa de ensino. Hoje, em virtude do conteúdo excessivo, os professores têm pouca condição de aprofundar as disciplinas porque o currículo do ensino médio acabou se tornando uma espécie de sobreposição de programas de vestibular. É praticamente impossível não lançar mão de decorebas, fórmulas, etc., para dar conta da abrangência dos conteúdos que são cobrados nos milhares de vestibulares que ocorrem no País.

ISTOÉ – Quanto tempo a educação brasileira levará para mudar para melhor, graças ao novo conceito?
Haddad –
Minha expectativa é que o início da mudança ocorra a partir da adesão das universidades. Dependemos dessa adesão, para que o ensino médio consiga respirar aliviado, para cobrir um conteúdo mais inteligente, mais instigante. A velocidade da transição vai determinar a da mudança

“Desde que as notas médias do Enem por escola foram divulgadas começou um movimento de adaptação”

ISTOÉ – Muitas escolas de elite que não se saíram bem na avaliação de 2007 subiram dezenas de posições em 2009. Como isso foi possível?
Haddad –
Na interlocução com diretores de escolas particulares e públicas, percebemos que, desde que as notas médias do Enem por escola foram divulgadas pela primeira vez, em 2006, começou um movimento de adaptação das instituições de ensino.

ISTOÉ – Os alunos de escolas públicas não continuam em desvantagem, já que o problema é a qualidade do ensino nessas instituições?
Haddad
– Em primeiro lugar, as escolas públicas têm um investimento por aluno equivalente a 10% do que se investe em média no estudante de escola privada. E recebem o aluno em condições socioeconômicas muito mais desfavoráveis. A família é um determinante da educação dos filhos. A distância existe, mas entendo que é superável. Fixamos metas até 2022 para que a escola pública se equipare em qualidade à escola particular – que atende apenas 12% da população.

Hugo Marques