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Ainda sobre a polêmica das cotas (O Estado de S.Paulo – Economia&Negócios – Blogs – 15/03/10)
José Paulo Kupfer
Eu sabia que a discussão, a partir do texto e dos vídeos do post anterior, não ia ficar no que eu propus: reflexões sobre as leis, sua qualidade, a qualidade de sua aplicação, os dribles na lei e a naturalidade como eles são aceitos. Propositalmente, não avancei no que penso sobre políticas afirmativas – e, dentro delas, as cotas. Mas a discussão, nos comentários ao post anterior, como esperado, se concentraram nas cotas – com leitores se posicionando a favor e contra, às vezes com desnecessária agressividade.
Então, como estou na chuva, vou correr o risco de me queimar, como dizia o lendário e folclórico presidente do Corinthians, Vicente Matheus. Espero que aqueles que discordem – e, claro, os que concordem também – exponham seus argumentos com o espírito do entendimento e do debate de ideias. Sou favorável às cotas. Não é por uma fatalidade do destino que o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta. A origem dessa chaga que, infelizmente, não envergonha a todos os brasileiros – nem leva outros a perceber o quanto esse é um entrave essencial ao nosso desenvolvimento econômico – vem da formação da sociedade e, com grande intensidade, da resistência social à distribuição de renda e à oferta universal de oportunidades de ascensão social. Na existência de um quadro assim, políticas afirmativas podem ajudar a acelerar o processo de redução das desigualdades. Acho que a pobreza no Brasil tem cor. Mas, embora reconheça a peculiaridade da discriminação contra pessoas de pele não-branca, me inclino a acreditar que políticas afirmativas com alvo nos pobres, no geral, atingirão também uma significativa parcela de pretos e pardos. Com a vantagem de não deixar de fora os que, não sendo pretos e pardos, também são pobres. Prefiro, portanto, as políticas afirmativas sociais. A necessidade da adoção de políticas afirmativas não vem da ideia de que os pobres têm de receber privilégios. Entendo que é exatamente o inverso. Aos pobres não são oferecidas oportunidades a que os não-pobres têm o privilégio do acesso. Trata-se, portanto, de igualar ou, pelo menos reduzir, a distância que os separa, por qualquer razão, dos mais privilegiados. Salvo em casos excepcionais, que não são poucos, mas insignificantes, estatisticamente, no cômputo global, não vejo relação entre certos fatores individuais, como inteligência e esforço pessoal, e o sucesso de pessoas pobres, filhos de pais pobres e menos instruídos, na vida profissional e cotidiana. Para que esse tipo de argumento meritocrático pudesse ser aplicado com justiça, todos os cidadãos, a cada geração, deveriam partir do mesmo ponto, igualados nas oportunidades. Não falo só de rendas e heranças, repassadas às novas gerações das famílias que as acumularam, que se traduzem em óbvias vantagens sociais, mas também de outros elementos fundamentais para alcançar o mérito. Instrução dos pais – e, sobretudo, das mães –, moradia decente, transporte eficiente e saneamento básico, atenção à saúde das crianças são alguns exemplos daqueles aparelhos sociais que, sendo insuficientes, configuram “handicaps”. E, obvia e principalmente, a qualidade do ensino público. Esses “handicaps”, na minha opinião, fazem da meritocracia, quando limitada às aptidões individuais, não só uma hipocrisia social, mas uma crueldade moral. No caso da discussão das cotas, argumentos sobre a inexistência de raças ou, no outro lado do espectro ideológico, os da obrigatoriedade de compensações pelo Estado às crueldades e injustiças a que foram submetidas imensas populações de escravos e descendentes, não me comovem. Nesse segundo caso, a ideia-força é a da reparação da ilegalidade praticada contra eles pelo Estado. No meu entendimento, esse tipo de reparação é cabível, mas, em caráter individual, como, por exemplo, são as indenizações devidas a presos políticos do regime militar de 1964. Dicutir quem escravizou quem, se brancos europeus, brasileiros miscigenados ou africanos na própria África, dá uma boa polêmica histórica, mas sem muita importância para a questão das cotas. Idem quanto às teorias sobre a miscigenação. Não importa muito, para o sistema de cotas, se ela se deu por consentimento ou imposição, ainda que, até onde consigo entender, a versão propagada pelo senador Demóstenes Torres, na audiência pública no STF, soe um tanto ridícula. Também acho um tanto bizantina, quando está em discussão o problema da discriminação social, a pendenga em torno da existência de raças. Concordo que gente é tudo humano, que raça é para cachorro, que o sangue de todo mundo é vermelho e que, sobretudo no caso do Brasil, a miscigenação embolou o meio de campo genético. Mas tomar isso como ponto de corte, no meu modo de ver, é puro diversionismo. O preto retinto Neguinho da Beija-Flor pode ter 98% de origem branca, mas o que o discriminou na vida, até se tornar um artista renomado, foi a cor de sua pele. O nó da discriminação é a cor da pele, não o DNA.
A presente discussão sobre as cotas nas universidades públicas, que envolve existência de raças ou não e reparações ou não pela escravidão, nem sempre tem sido bem lembrado, é uma espécie de debate 2.0 do problema. No debate 1.0, os argumentos contras as cotas em universidades eram mais de caráter educacional. Agora é que enveredaram mais pelos campos da genética e da História. Na primeira fase da polêmica das cotas, os que eram contrários a elas argumentavam que os cotistas rebaixariam a qualidade do ensino das escolas e não conseguiriam acompanhar os cursos. Insistiam também que, em lugar de tentar resolver pelo facilitário a questão do acesso dos menos favorecidos à universidade, instituindo sistemas de cotas, os governos deveriam investir na melhoria da qualidade do ensino fundamental. Alertavam ainda para a discriminação de que os cotistas seriam vítimas, abrindo espaço para a instalação, nas universidades, de uma violência racial que o Brasil desconhecia. Com a experiência já acumulada em dez anos de cotas de ingresso em universidades, esses argumentos caíram em desuso. Tanto isso é verdade que nem mais estão sendo usados pelos que, nesta segunda etapa, continuam a combater as cotas. Cerca de 70 instituições já adotaram sistemas de cotas e, por eles, já se formaram mais de 50 mil cidadãos brasileiros. Nada do que previam os contrários às cotas, pelo menos até aqui, aconteceu.
Leis “para inglês ver” (O Estado de S.Paulo – Economia&Negócios – Blogs – 13/03/10)
José Paulo Kupfer
O debate sobre cotas raciais nas universidades no STF, em muito boa hora promovido pelo ministro Ricardo Lewandowski, para instruir um futuro julgamento de sua constitucionalidade, tem propiciado excelentes subsídios para que os cidadãos possam se posicionar sobre o tema polêmico. Mas, tem também dado passagem a outras reflexões. Pena que a reprodução dos argumentos expostos nas audiências públicas em Brasília não seja tão disseminada quanto seria desejável. A apresentação do historiador Luiz Felipe de Alencastro, por exemplo, ficou até aqui restrita à transmissão da TV Justiça e à blogsfera. Professor titular de História do Brasil na Universidade Paris I – Sorbonne, Alencastro é um especialista no tema da escravidão no Brasil. É dele “O Trato dos Viventes” (525 pág., Companhia das Letras, 2000, R$ 69,50), uma obra de referência para os estudos mais modernos do tema. Chama a atenção, na apresentação de Alencastro, o registro de que, no Brasil, entre 1831 e 1888, 760 mil negros e seus descendentes foram mantidos em regime de escravidão, ainda que, legalmente, fossem livres. Promulgada sob pressão da Inglaterra, a lei de 7 de novembro de 1831 determinava que fossem livres todos os escravos que entrassem no Brasil vindos de fora, inviabilizando, em teoria e na letra legal, o tráfico negreiro. Mas foi, literalmente, uma lei “para inglês ver”. Desembarcados em portos clandestinos, os africanos que aqui chegaram depois de 1831 continuaram escravizados. Os que se rebelavam eram considerados fugitivos e, como tal, punidos, por lei, com açoite e tortura. Uma combinação perversa de violência e impunidade, sob as vistas grossas da sociedade, em resumo, tornaram possível a perpetuação, por mais de meio século, de uma flagrante ilegalidade. Alencastro remete para aquele período histórico parte da responsabilidade pela a situação de faroeste que hoje nos empurra para guetos fortificados, pretensamente protegidos da violência do espaço público urbano, e a regra da impunidade que orienta um amplo leque de decisões, inclusive a do cotidiano pessoal, tanto no âmbito público quanto no âmbito privado. Dos inúmeros pequenos delitos do dia-a-dia ao cinismo da prática aberta de ilegalidades na vida política, passando pela corrupção disseminada nas relações público-privadas, tudo transcorrendo sob as vistas grossas da sociedade, nada, nos dias de hoje, difere muito da norma moral em vigor no Segundo Reinado. Quando, por exemplo, assistimos o presidente Lula, sua candidata, ministra Dilma Rousseff, e o principal opositor, governador José Serra, de mangas arregaçadas em campanha eleitoral aberta, muito antes do início do prazo estipulado em lei, não é difícil compreender que estamos diante de um fenômeno entranhado em nossa personalidade social. Idem quando, sem tirar nem pôr, no caso de um outro exemplo emblemático, circulamos com nossos carros protegidos por películas plásticas de segurança com porcentual de transparência fora dos limites legais, mas garantidos por “selos oficiais” falsos, que simulam conformidade com a lei. Leis “para inglês ver” é o que não faltam na nossa estrutura institucional. Vistas grossas em relação a ilegalidades consentidas, que garantem nosso pé no atraso social, infelizmente, também não.