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01/12/2011 / Em: Clipping

 


Cujo, o famigerado  (Folha de S.Paulo – Cotidiano – 01/12/11)

Pasquale Cipro Neto

Além de famigerado (com o sentido usual), o relativo ‘cujo’ é quase um moribundo, errático, sem sepulcro à vista

Um dos memoráveis contos de “Primeiras Estórias”, obra-prima de Guimarães Rosa, é “Famigerado”. Um bandidaço (“Damázio, dos Siqueiras”) chega a um lugarejo e pede ao médico do local que lhe explique o significado de “famigerado” (“Eu vim perguntar a vosmecê uma opinião sua explicada”). Não vou estragar o prazer de quem ainda não leu o conto. Se é esse o seu caso, caro leitor, é só entrar num dos sites de busca e digitar “famigerado”. Permita-me outra sugestão: assista ao belíssimo filme “Outras Histórias”, que Pedro Bial dirigiu em 1999. O filme (que está -inteirinho- no YouTube) se baseia na obra quase homônima de Rosa. Um dos contos aproveitados por Bial é justamente “Famigerado”. Poucas vezes vi fotografia tão impressionante como a desse filme. A essa beleza se acrescenta o magnífico trabalho dos atores e do diretor. Pois bem. Ao pé da letra, “famigerado” significa “famoso”, “célebre” etc., mas, no uso comum, esse adjetivo significa “tristemente afamado”, “que tem má fama”. Diria eu que, “mutatis mutandis”, é esse o caso do pronome “cujo”, que, além de famigerado (com o sentido usual), é quase um moribundo, errático, sem sepulcro à vista. Na verdade, se fizermos uma pesquisa rápida, veremos que, na língua oral, o “cujo” é quase um abantesma. Na língua do dia a dia, apresenta incidência zero (na fala formal ocorre com certa frequência). Na escrita formal, a coisa muda de figura, já que sua presença não é incomum. Alguns falsos defensores dos fracos e oprimidos defendem a tese do não ensino desse pronome nas aulas de português (“É brontossauro linguístico”, dizem esses gênios), mas a vida real mostra que esse bicho-grilismo não leva a lugar algum. A vida real a que me refiro pode começar, por exemplo, pelas provas de português de vestibulares de muitas das universidades cujas (epa!) faculdades de letras abrigam defensores da bizarra tese do não ensino de “brontossauros linguísticos”. Nesses vestibulares, o candidato precisa saber (sim!) o que é “cujo”, como se emprega etc. Essa cobrança é feita direta e indiretamente, ou seja, por meio de questões específicas ou pela leitura de textos em que se registra o emprego desse relativo. O resultado do não uso ou da fuga desse famigerado nem sempre gera soluções interessantes. Vejamos este título, publicado recentemente por um site: “Veja carros importados que novo IPI fez baixar vendas”. A frase poderia perfeitamente entrar numa questão da Fuvest ou da Unicamp, por exemplo, com um enunciado parecido com este: “Na frase em questão, notam-se elementos típicos da linguagem oral. Reescreva-a, adaptando-a ao padrão escrito formal culto”. Uma viagenzinha por provas passadas da Fuvest e da Unicamp basta para que se comprove o que afirmei. Pois bem. Que marcas da linguagem oral há na frase em questão? Essencialmente, o emprego do “que” como relativo universal, o que dá aos termos do enunciado uma ordem diferente da que haveria caso o relativo “cujo” fosse empregado. O caro leitor já sabe qual é a solução? Vamos lá: o que o novo IPI fez baixar? As vendas de alguns importados, certo? Pois é aí que entra o pronome relativo “cujo”, para estabelecer a relação entre os substantivos “importados” e “vendas” (vendas dos importados/vendas deles/cujas vendas): “Veja importados cujas vendas o novo IPI fez cair”. O artigo definido “o” antes de “novo IPI” é por minha conta, já que no texto original ele tinha sido (indevidamente) fulminado, como sempre. É isso.