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22/07/2010 / Em: Clipping

 


Os caçadores e o elefante (O Estado de S.Paulo – Espaço Aberto – 22/07/10)

Dois dias atrás, no meio da tarde, em cerimônia no Palácio do Itamaraty, Lula sancionou a primeira lei racial da História do Brasil. São 65 artigos, esparramados em 14 páginas, escritos como propósito de anular o artigo 5.º da Constituição federal,que começa com as seguintes palavras:“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.” O conjunto leva o título de Estatuto da Igualdade Racial, uma construção incongruente na qual se associa o princípio da igualdade ao mito da raça, que veicula a idéia de uma desigualdade essencial e,portanto, insuperável.O texto anticonstitucional,aprovado em 16 de junho por um acordo no Senado, é uma versão esvaziada do projeto original.No acordo parlamentar suprimiram-se as disposições que instituíam cotas raciais nas universidades,no serviço público,no mercado de trabalho e nas produções audiovisuais.Pateticamente,em todos os lugares,exceto no título,o termo“ raça ”foi substituído pela palavra “etnia”, empregada como sinônimo.Eliminou-se ainda a cláusula que asseguraria participação nos orçamentos públicos para os “conselhos de promoção da igualdade étnica”,órgãos a serem constituídos paritariamente nas administrações federal, estaduais e municipais por representantes dos governos e de ONGs do movimento negro.Mas o que restou é a declaração de princípios do racialismo. A lei define uma coletividade racial estatal: a “população negra”,isto é, “o conjunto de pessoas que se auto declaram pretas ou pardas”. Dessa definição decorrem uma descrição racial do Brasil,que se dividiria nos grupos polares “branco” e “negro”, e a supressão oficial das múltiplas identidades intermediárias expressas censitária mente na categoria “pardos”. Implicitamente, fica cassado o direito de auto declaração de cor/raça, pois o poder público se arroga a prerrogativa de ignorar a vontade do declarante, colando-lhe um rótulo racial compulsório. O texto funciona como plataforma para a edificação de um Estado racial, uma meta apontada no artigo 4.º, que prevê a adoção de políticas raciais de ação afirmativa e a “modificação das estruturas institucionais do Estado” para a “superação das desigualdades étnicas”.A fantasia que sustenta a nova lei consiste na visão do Brasil como uma confederação de nações e raças.Nessa confederação o princípio da igualdade deixaria de ser aplicado aos indivíduos,convertendo-se numa regra de coexistência entre coletividades raciais.Os cidadãos perdem o estatuto de sujeitos de direitos,transferindo-o para as coletividades raciais.Se o Poder Judiciário se curvar ao esbulho constitucional, estudantes ou trabalhadores da cor “errada” não poderão apelar contra o tratamento desigual no acesso à universidade ou a empregos argüindo o princípio da igualdade perante alei, pois terão sido rebaixados à condição de componentes de um grupo racial. Nos termos do estatuto racial, que é um estatuto de desigualdade, a “população negra” emerge como uma nação separada dentro do Brasil.O capítulo I fabrica direitos específicos para essa nação- raça no campo da saúde pública;o capítulo II, nos campos da educação,da cultura,do esporte e do lazer; o capítulo IV, nas esferas do acesso à terra e à moradia; o capítulo V, na esfera do mercado de trabalho; o capítulo VI, no terreno dos meios de comunicação.O pensamento racial imagina a África como pátria da “raça negra”.A nova lei enxerga a “população negra”como uma nação diaspórica: um pedaço da África no exílio das Américas. O capítulo III determina uma proteção estatal particular para as “religiões de matriz africana”.A supressão do financiamento público compulsório para os“ conselhos de promoção da igualdade étnica” e dos incontáveis programas de cotas raciais na lei aprovada pelo Senado refletiu, limitada e parcialmente,o movimento de opinião pública contra a racialização do Estado brasileiro.Uma vertente das ONGs racialistas interpretou o resultado como uma derrota absoluta– e pediu que o presidente não sancionasse o texto esvaziado. Surgiram até vozes solicitando uma consulta plebiscitária sobre o tema racial, algo que, infelizmente, não se fará. O Ministério racial, que atende pela sigla enganosa de Seppir, entregou-se à missão de alinhar sua base na defesa do “estatuto possível”. Para tanto reuniu pronunciamentos de arautos do racialismo, como o antropólogo Kabengele Munanga, uma figura que chegou a classificar os mulatos como “seres naturalmente ambivalentes”, cuja libertação dependeria de uma opção política pelo pertencimento ao grupo dos “brancos” ou ao dos “negros”. Na sua manifestação o antropólogo narrou uma fábula sobre os caçadores mbutis, da África Central, denominados pigmeus na época da expansão imperial européia. Os caçadores de Munanga almejam abater um elefante, mas voltam para a aldeia com apenas três antílopes, “cuja carne cobriria necessidades de poucos dias”. As mulheres e crianças, frustradas, contentam-se com tão pouco e não culpam os caçadores,mas Mulimo, deus da caça,a divindade desse povo monoteísta. Os caçadores voltarão às savana e,um dia, trarão o elefante.A fábula é apropriada,tanto pelo seu sentido contextual como pelas metáforas que mobiliza. Ela remete a um povo tradicional, fechado nas suas referências culturais,que serviria como inspiração para a imaginária nação-raça diaspórica dos “afro-brasileiros”. Os caçadores simbolizam as lideranças racialistas, que já anunciam a intenção de usar o estatuto racial para instituir, por meio de normas infralegais, os Programas de cotas rejeitados no Senado. O elefante representa o Estado racial completo, com fartas verbas público para sustentar uma burocracia constituída pelos próprios racialistas e dedicada à distribuição de privilégios. Munanga não falou das guerras étnicas na África Central. É que o assunto perturba Mulimo e prejudica a caçada.

DEMÉTRIO MAGNOLI
SOCIÓLOGO, É DOUTOR EM GEOGRAFIA
HUMANA PELA USP.

Correção

Diferentemente do que foi publicado na edição do dia 17, a Unicamp não adota o sistema de cotas, mas sim ações afirmativas pelo Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (Paais). As vagas são conquistadas mediante bom desempenho dos alunos no vestibular, somado a uma bonificação referente ao estudo do ensino médio realizado integralmente na rede pública.