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24/07/2017 / Em: Clipping

 

Ensino superior pasteurizado (O Globo – Brasil – 22/07/2017)

A criatividade não é estimulada, senão proibida. É modelo controlado, em última instância, por corporações de portadores de diplomas de ensino superior

No início do século XXI, o Brasil inventou um setor econômico novo, o ensino superior com finalidade lucrativa. Mostrou vitalidade, expandiu-se e provê educação para milhões de estudantes. Pouco antes, no fim do século passado, o país inventou, por meio de Regime Jurídico Único, RJU, o ensino superior burocratizado, provido por funcionários públicos, com frequente tutela sindical. Dominadas pela lógica do funcionalismo público, sindicalismo e decorrente corporativismo, as universidades governamentais assumiram formatos semelhantes, adotando regras homogêneas, uniformizando salários, pasteurizando-se. Dominadas pela lógica do mercado, as universidades particulares também assumiram formatos semelhantes, adotando regras homogêneas, pasteurizando-se. Tal resultado se escora em regras de avaliação e regulação desenhadas pela burocracia pública, por meio do MEC, que entendeu ser “natural” o modelo baseado na concepção burocrática e eventualmente sindical de ensino superior. Nele se inspiraram para criar um sistema de avaliação e regulação. A criatividade não é estimulada, senão proibida. É modelo controlado, em última instância, por corporações profissionais de portadores de diplomas de ensino superior. Protegidas por leis presenteadas pelo Congresso Nacional, em estreita cooperação com o MEC, baseadas em regra da Lei de Diretrizes e Bases, garantem e demandam a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino superior de cada “profissão” regulamentada por lei. Numa perversa consequência não antecipada, o mercado, o corporativismo e a burocracia, juntamente com o sindicalismo imperante, engessaram, e agora atrapalham, a formação de gerações futuras. As universidades brasileiras são uma federação de escolas de preparação profissional, tuteladas por “profissões” do passado, destinadas a nichos profissionais que não mais fazem sentido e, ainda mais, deixarão de existir no futuro. Provocou comoção e debate a reforma do ensino médio. Atenção nenhuma se dispensa, contudo, à indispensável reforma do ensino superior, muito mais complicada porque atinge diretamente o poder de corporações estabelecidas e sancionadas por leis, federações e conselhos nacionais de profissões que filiam milhares de integrantes. O MEC e a sociedade brasileira precisariam compreender que não há nada de “natural” naquilo que os jovens aprendem hoje nas universidades. Não passa de codificações primitivas de ditames corporativos advindos de grupos de interesse que tiveram sua “profissão legal” sancionada pelo Congresso. Continuamos a perpetuar a existência de um passado que ainda governa os estudos das novas gerações, obrigando-as a gastar tempo com informações que não têm mais lógica e serventia no mundo real.

 


 

Reforma do ensino médio é autoritária (Jornal da USP – Atualidades – 21/07/2017)

Para especialista em educação, a postura adotada pelo governo não seria comum nem durante a ditadura militar

A reforma do ensino médio tem gerado polêmica desde que foi sancionada como Medida Provisória (MP) pelo presidente Michel Temer. Dentre as mudanças previstas estão a flexibilidade na escolha de disciplinas e o incentivo ao ensino em período integral. Lisete Arelaro, professora e ex-diretora da Faculdade de Educação, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação e pesquisadora na área de políticas públicas em educação, faz duras críticas ao projeto do governo. A pesquisadora conta que foi com surpresa que os especialistas da área souberam da MP, pois desde 2014 trabalhavam, em diálogo com estudantes e o restante da sociedade, em um projeto de lei para reestruturar o ensino médio. Lisete lembra que nem durante o período da ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, uma atitude deste tipo seria comum por parte do governo. Para a especialista, a reforma representa um retrocesso e suas medidas desqualificam a educação do jovem, que já deixa a desejar. Ela é especialmente incisiva quanto ao incentivo ao ensino a distância e duvida que as escolas brasileiras estejam minimamente preparadas para ofertar o período integral e as disciplinas optativas.

 


Exames padronizados, como o Enem, podem atrapalhar mais do que ajudar (Gazeta do Povo – Educação – 21/07/2017)

Pressão por resultados tende a prejudicar alunos; diversos países repensam maneira ideal de avaliar a educação

Em abril deste ano, o Comitê de Educação da Casa dos Comuns do Reino Unido emitiu um alerta: os exames padronizados aplicados obrigatoriamente no ensino primário não melhoram as condições de ensino e têm um impacto negativo no bem-estar das crianças. Há outros indícios de que testes do tipo, como Enem, podem criar distorções no currículo: em vez de ensinar o que é preciso, o foco passa a ser os bons resultados no exame. De acordo com avaliação do comitê britânico, os esforços dos professores e da gestão escolar para que os alunos passem nos exames levam a um ensino mais restrito, focado nas habilidades de leitura, escrita e matemática que compõem o quadro principal dos exames, em detrimento de outras disciplinas. Para Neil Carmichael, membro do comitê, os exames são importantes para avaliar o trabalho das escolas, mas o impacto é muito alto, muito cedo. “As avaliações estão relacionadas diretamente a um sistema de responsabilização das escolas, em que os resultados dos exames são utilizados para levar a responsabilidade do progresso dos alunos às escolas e aos professores”, disse em entrevista ao Independent. “Mas a grande importância dos exames pode causar um impacto negativo no ensino e na aprendizagem, levando a um currículo mais estrito e um ‘ensino para o exame’, o que afeta o bem-estar dos alunos e dos professores”, completa Carmichael.

Ambiente prejudicial

O comitê britânico pode ter razão. Uma pesquisa realizada pelo sindicato NASUWT (National Association of Schoolmasters Union of Women Teachers) com professores e gestores escolares no Reino Unido indicou que 84% dos educadores atribuem a pressão dos exames a um aumento de problemas na saúde mental dos alunos. Nos exames aplicados no final do ano letivo em 2016, 53% dos alunos alcançaram a média esperada em leitura, escrita e matemática. Mas, de acordo com o comitê, esses resultados não oferecem uma visão realista das habilidades dos alunos, classificando uma grande parcela deles incorretamente como baixa habilidade, enquanto outros são passados para o nível seguinte com uma avaliação alta demais. Com a pressão em elevar a média de cada turma, essa classificação acaba criando um padrão: priorizam-se os alunos de baixo desempenho que pontuam próximo da média e excluem-se aqueles com pontuação extremamente baixa. “Os alunos que têm chances muito baixas de passarem são excluídos das intervenções ao longo do ano para que se possa focar nos alunos mais próximos da média”, revelou um professor para uma pesquisa realizada pelo Sindicato Nacional de Professores do Reino Unido (NUT – National Union of Teachers). “Isso é vergonhoso, mas a gestão escolar faz muita pressão para ter a maior porcentagem possível de alunos aprovados.” De acordo com a pesquisa do NUT, 84% dos professores entrevistados acreditam que os alunos com necessidades especiais são os mais prejudicados pelos exames, e 58% defendem que os alunos alfabetizados em outro idioma são discriminados. A pressão por resultados, e não progresso, tem impacto sobre os estudantes. “Os alunos que sabem que não estão no caminho para alcançar a média nacional se sentem ansiosos. Eles deveriam poder sentir orgulho do seu progresso ao invés de receberam uma sentença de que falharam”, disse outro professor na pesquisa.

Prova Brasil

No sistema brasileiro, a Prova Brasil é realizada para mensurar o aprendizado dos alunos e o desempenho dos professores e gestores. Na edição de 2015, apenas 7,3% dos estudantes atingiram a pontuação mínima adequada em matemática, e 27,5% em português. A pressão por alto desempenho das escolas com base nos resultados de exames levou ao fim do ranking do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) por escolas a partir deste ano; até o ano passado, a média de notas dos alunos classificava a escola no ranking nacional. A mudança ocorreu depois de denúncias de escolas que criavam turmas especiais com alunos de alto desempenho para conseguir alta posição no ranking. Para a presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Maria Inês Fini, o exame nacional não deve ser utilizado para a avaliar a escola, e a abolição do ranking é uma resposta a reivindicação dos profissionais da educação. Segundo o ministro da Educação, Mendonça Filho, a mudança ocorreu porque as instituições utilizavam os dados de forma equivocada. “Não é missão do Estado brasileiro estabelecer o ranking, que produzia um desserviço e uma desinformação.”

Estados Unidos

Nos EUA, mudanças nos exames padronizados começaram a ser feitas no governo de Barack Obama. Desde 2016, os estados passaram a ter mais autonomia para definir o tipo de avaliação utilizada nas escolas públicas. “Vamos trabalhar com estados, distritos escolares, professores e pais para nos certificarmos que não estamos obcecados com exames”, afirmou Obama na ocasião. No estado norte-americano de New Hampshire, os testes padronizados passaram a ser aplicados ao final de cada ciclo escolar, em vez de serem realizados a cada ano, e a maior parte das avaliações passou a ser realizada com base em desempenho, em atividades mais flexíveis em modelo e duração. A eventual abolição do sistema de avaliação padronizado criaria outros problemas: em um país diverso com o Brasil, por exemplo, o que fazer para medir a qualidade do sistema educacional como um todo? A falta de critérios objetivos foi justamente o que motivou a criação de avaliações nacionais. O fim desse sistema teria consequências permanentes. Mas isso não significa que os problemas do modelo devem ser ignorados.

 


A USP e as cotas (Isto É – Colunas – 21/07/2017)

A Universidade de São Paulo é a melhor e maior instituição pública de ensino superior da América Latina. Foi criada em 1934 por intelectuais brasileiros e franceses, todos donos de notório saber, com três objetivos principais: criar elites dirigentes para as áreas administrativas do País diante de um Estado expansivo e totalitário posto em prática por Getúlio Vargas; formar professores para as escolas secundárias; estimular universitários a seguirem a carreira acadêmica, pela meritocracia, organizando assim quadros para a própria universidade dispostos a pensarem um modelo sociológico e político (sempre democrático) para o Brasil. Atualmente a USP possui cerca de quinhentos cursos, e acaba de aderir ao sistema de cotas social e racial. Em um Brasil onde a desigualdade e a não-democracia social se aprofundam cada vez mais (há indivíduos privilegiados e há indivíduos marginalizados, já no ventre gestante da mãe), o recurso de cotas não pode deixar de ser bem recepcionado. É vital, no entanto, que o vejamos como um simples curativo para a descomunal ferida que é o abandono do ensino médio público por parte das autoridades. O risco que se corre, com a implantação de cotas na USP, é que os governos se valham espertamente delas e joguem de vez às traças o ensino médio que eles têm o dever constitucional de fornecer com alta qualidade e de forma gratuita. Mais: se os universitários cotistas não acompanharem o alto padrão de ensino da USP, ela abrirá mão de sua excelência? Esse sucateamento seria péssimo ao País. Se o nível for mantido, os alunos das cotas serão segregados pelos colegas? Isso é igualmente péssimo porque se estaria criando mais um estigma nesse País lotado de estigmas. A solução para tudo isso deve ser pensada. Nos EUA, por exemplo, a Suprema Corte decidiu que a cota racial não fere o princípio da isonomia. O resultado foi de quatro votos a três, com a juíza liberal Elena Kagan se dando por impedida porque participara do governo de Barack Obama e o juiz Anthony Kennedy, conservador, surpreendendo a todos ao dizer sim às cotas. É importante destacar a aula de democracia que ele nos dá: a inclusão social e racial não se conquista somente com a reserva de vagas para uma determinada quantidade de alunos pobres e negros. É necessário que a própria instituição mantenha uma política de integração. Aqui no Brasil já assistimos à pseudo-democratização do ensino durante o regime militar, com a proliferação de fraquíssimas faculdades particulares. É claro que quanto mais gente concluir cursos superiores tanto melhor para a sociedade. Mas esses cursos têm de ser avaliados pela qualidade das aulas e não somente pela quantidade de cotistas no corpo discente.